Poderia enganar-se e fingir que tudo estava bem, que tinha conseguido prestígio considerável no meio em que trabalhava. Poderia dizer para si mesma que fazer as compras para o fim de semana e escolher um congelado para jantar sozinha não passava de uma dádiva concedida apenas às mulheres maduras e economicamente estáveis. Não possuía coragem para tanto. E, na ausência desta, deixava-se engolir pelo supermercado, mastigada e mecânica ao pinçar itens das prateleiras e colocá-los no carrinho. Procurava desfrutar do prazer barato de não ter o corpo derretendo pelas ruas, olhando para todos sem ver nenhum, guardando as embalagens lado a lado, dando-se o direito de algumas extravagâncias como o vinho do porto e as postas rosadas do salmão. Alcançaria, quem sabe, a completude em alguma daquelas variadas formas.
Navegava no ritmo da música ambiente que mal percebia. Havia se tornado impessoal nos últimos meses, recusando os convites dos amigos, ignorando colegas, esquecendo da presença da secretária eletrônica. Não tolerava sorrisos simpáticos, manifestações piedosas.
Domava sua própria vida, suas próprias escolhas, impondo-se um calvário sem pequenas distrações. Além do trabalho, permitia-se somente prazeres solitários como livrar-se da modorra do dia feito náufraga em um supermercado.
Nessa tarde, porém, resolvera resgatar um ponto, mesmo sendo esse ponto ainda um segredo. A exatidão tecnicamente invisível da maioria das coisas existentes poderia, quem sabe, estar escondida na forma de uma vida mais saudável, de uma rotina com mais beterrabas e betacaroteno. Resolvera resgatar, além do ponto, um sentido secreto — o mistério das coisas boas.
sendo traduzido, aguarde..
